Aborto. Dos temas de onde se consegue uma divisão o mais uniforme possível de apoiantes e críticos. Muito já foi este um tema de conversa, mas muita discordância continua este a gerar. Com este texto, pretendo dar uma pequena luz sobre alguns argumentos utilizados em discussões sobre o aborto, e reflectir sobre a sua validade e poder persuasivo.
“O feto é um ser humano com direito à vida, que não fez nada para não o merecer”
A típica classificação – O feto é um Homem, logo tem direito à vida. É um argumento forte, mas tem como base o pressuposto de que existe uma uniforme concordância sobre a classificação do feto como um ser humano. O que não é verdade! É verdade que, do ponto de vista científico rigoroso, a partir da concepção, o ovo fecundado é classificado como um organismo da espécie Homo Sapiens Sapiens e é, portanto, tecnicamente, um ser humano. No entanto, e especialmente num caso tão particular e concreto como este, não creio que a definição científica nos baste. Teremos de incluir, além do básico conceito biológico de ser humano, o conceito sociológico de Homem. O que distingue um Homem de apenas um ser vivo? É uma questão difícil, porque inclui interpretações tais como a sapiência, a autoconsciência, e a mera posse dos cromossomas e do DNA típicos da nossa espécie não basta para a categorização fiável, do ponto de vista social e político. Um bebé num útero não é contabilizado num censo, não é visto demograficamente como um cidadão até nascer.
O principal a retirar disto é que o argumento, apesar de chegar a uma conclusão viável e lógica, utiliza como premissa uma afirmação que não tem consenso geral – a classificação do feto como humano. Como tal, não é suficientemente generalizável para ter um bom poder persuasivo.
Há a destacar ainda que a utilização deste argumento do direito à vida implica a inexistência de casos de distinção de aborto. Ou seja, o aborto teria de ser ilegal em qualquer circunstância – mesmo que ele surgisse devido a uma violação, ou que ele se devesse ao facto de se prever que o bebé nasceria com severas deficiências. O argumento é de tal modo dogmático que, mesmo para esses casos, teríamos de dizer o mesmo: o feto é um ser humano com direito à vida. O facto de ter sido concebido violentamente contra a vontade da mulher, ou de apresentar deficiências, não lhe retira o intocável direito à vida, visto que não se lhe pode associar qualquer influência ou culpa.
Outro comentário comum de se ouvir por parte de quem se opõe ao aborto é a ideia de que “a mulher deve aprender a lidar com o erro que cometeu”. Apesar de este não considerar casos como a violação, apoia a ideia de ver a ilegalização do aborto como um castigo a quem praticou sexo banalmente ou descuidadamente. Apesar de ser evidente que qualquer pessoa que decida ter uma relação sexual deverá tomar as devidas cautelas, eu não consigo concordar com a ideia de que devemos forçar uma mulher a ter um filho indesejado só porque o preservativo rompeu ou porque ela se esqueceu de tomar a pílula. As ideias por detrás de tal posição são extremamente injustas:
Primeiro, não é direito do governo impor uma determinada posição quanto à moralidade da prática do sexo casual e banal. Mesmo que se associe uma conotação negativa a quem pratique sexo casualmente e descuidadamente, é nosso dever respeitar quem o deseje fazer, e não castigá-los. Isto porque, de um ponto de vista social e político, este estilo de vida não prejudica ninguém, não retira liberdades a ninguém. Ter uma vida sexual activa não é nenhum crime, nem o deverá ser, e, consequentemente, não há razão para merecer castigo, especialmente um como este.
Segundo, porque, por detrás da ideia de castigar a mulher, é trazida uma nova pessoa ao mundo. Um filho indesejado nasce, com o intuito de castigar a mãe pelo seu descuido. Ao castigar a mãe, esquece-se o efeito traumático que terá no filho, sabendo este que a única razão pela qual existe é por castigo à mãe.
Na minha mais sincera opinião, pouco existe de mais valioso numa sociedade e num sistema político que o respeito. Há que respeitar o direito da mulher de decidir se quer ter o filho ou não, em vez de simplesmente impor a nossa opinião sobre ela, e forçá-la a segui-la. Há que fornecer o direito à escolha, pois a única razão pela qual esta deveria ser restringida seria se interferisse com a liberdade ou com os direitos de outrem. O único caso em que tal aconteceria seria na classificação do feto como ser humano, pois esta escolha interferia com o seu direito à vida. No entanto, esta classificação é demasiado incerta para que a ilegalização do aborto seja algo a impor, daí que eu seja completamente a favor do aborto.
Texto muito equilibrado. Mostra que não existe uma razão e uma não-razão. Existem razões, prós e contras, que merecem uma discussão fundamentada e não dogmática.
ResponderEliminarCaro Luís, fico satisfeito por saber que apreciou o texto. :) Efetivamente, no assunto do aborto, tal como na maioria de outros casos, creio que devemos saber olhar para as duas faces da moeda, em vez de nos cingirmos a puras moralidades dogmáticas, e devemos saber analisar racionalmente os prós e contras de cada vertente.
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário!
Lostio,
ResponderEliminarYou are lost.
xD lool Devo dizer que adorei este comentário. Um trocadilho simples, mas eficaz.
EliminarApesar de me ter deixado curioso sobre o que o faz crer que me encontro "perdido", como refere, fico satisfeito por ver que o texto, ou pelo menos o meu pseudónimo, teve impacto em si. ;) Obrigado pelo comentário!
Quem poderá dizer se é ou não moralmente condenável abortar? É um assunto que gerará sempre muita discussão e nenhum consenso. Se é verdade que o ser humano em questão nada fez para não merecer o direito à vida, também penso que, pelas razões por ti referidas, não se deva forçar uma mulher a ter um filho. A legalização do aborto leva a que cada um possa decidir consoante os seus próprios valores e lidar com sua decisão ao longo da vida. Não apoio o aborto, mas sou a favor da sua legalização.
ResponderEliminarA meu ver, a moralidade subjacente ao aborto está diretamente associada à classificação do feto como ser humano. Esse é, para mim, o cerne da questão e o principal motivo para se gerar discordância neste assunto.
EliminarIsto porque, se o feto for efetivamente visto como um ser humano tal como todos nós, o aborto constitui assassinato, que é moralmente e legalmente condenável, independentemente da opinião do cidadão que o cometeu.
Agora, será que devemos equiparar o aborto ao assassinato? Tal como elaborei no meu texto, eu não acredito que seja uma comparação justa, precisamente devido à ambiguidade do estatuto do feto como um ser humano, do ponto de visto social, humanístico e político.
Assim sendo, se a moralidade do aborto não é tão dogmática como a moralidade do assassinato, o procedimento mais justo é permitir que as duas vertentes existam. Ilegalizar o aborto implica a imposição de uma vertente: a de que o aborto é assassínio. Legalizar o aborto permite que cada pessoa aja conforme a sua posição pessoal, o que é, para mim, o mais correto.
A questão que pretendo focar é que devemos respeitar a diversidade de opiniões ao legalizar o aborto. Agora, o modo como cada um vê as moralidades subjacentes e se apoia pessoalmente a decisão de o fazer, são questões diferentes e obviamente subjetivas. Mas, ao legalizarmos o aborto, permitimos que cada um faça o que quer.
Muito obrigado pelo comentário, Miguel! :)