Há momentos que ficam para sempre na nossa memória, momentos que até parecem banais, mas que se colam a nós como uma imagem cinematográfica. O que vos vou contar passou-se já há alguns anos, mas de vez em quando assalta o meu presente com uma nitidez estranha porque, presumia eu, não deveria ter perdurado tanto tempo no tempo.
Estávamos nas vésperas do Natal, e os
hipermercados abarrotavam de gente numa azáfama de compras triviais e de outras
não habituais em tempos corriqueiros como os de todos os dias. Ainda hoje
considero que a ida ao hipermercado é um ato deprimente que faz parte do nosso quotidiano, mas passemos ao relato que vos quero fazer.
Na fila do caixa, à minha frente, encontrava-se
uma mãe acompanhada de uma filha com cerca de seis anos, com uns lindos olhos
azuis e um cabelo com uma cascata de caracóis que lhe dava um ar angelical. No
carrinho das compras seguia, para além das tais compras triviais, uma linda
boneca cujo destino imaginei ser algures debaixo de uma árvore de natal. Sorri.
Aquela mãe, com ar modesto, estava a concretizar, provavelmente, um desejo da
sua menina de olhos infinitamente azuis e uns caracóis desmedidamente loiros.
Repentinamente aqueles olhos azuis como que escureceram, a expressão do rosto
crispou-se e antes que fosse possível perceber a razão da mudança, um som estridente,
imperativo, terrivelmente exigente saiu da sua garganta. “Dá-me a boneca”. Com
muita calma, a mãe explicou-lhe que a boneca era para o natal e que lha daria
nessa altura. Explicou-lhe ainda que elas iriam embrulhar a boneca em papel de
oferta e colocar-lhe um lindo laço. Mas, a pequenita loira não aceitou a
explicação e gritou mais alto, esbracejando de forma ameaçadora e exigindo “quero a boneca JÁ!”. A mãe retorquiu,
pacientemente, que não podia ser já, que teria de ficar para depois. Confesso
que comecei a ficar apreensiva e curiosa, em simultâneo, como iria aquela mãe resolver
a situação? Não demorou muito tempo para que a solução surgisse. Novo berro e a
criança já não só agitava os braços como batia com os pés no chão com toda a
força. “Não quero a boneca no natal,
quero a boneca JÁ, JÁ, JÁ”. Entretanto avançava com os braços num gesto
ameaçador que fazia supor que a ordem ou era cumprida ou aquela mãe levava uns
valentes socos daquelas mãozinhas minúsculas mas decididas a fazer valer a sua
vontade. Foi então que vi a mãe estender os seus braços para dentro do carrinho
de compras e, por um momento pensei, a boneca vai voltar para a prateleira… mas
não, aqueles braços pertenciam a um corpo cansado de tanta luta, aquela mãe
claudicou, deu-se por vencida e estendeu a boneca para a filha cujos olhos
azuis chispavam num misto de ódio e triunfo.
Vencera, ela sabia que aquela estratégia nunca
falhava!
Javier Urra, psicólogo clínico e
especialista em comportamento infantil, refere num dos seus livros, “Não me
preocupa tanto que mundo vamos deixar às nossas crianças mas sim que crianças
vamos deixar a este mundo”, especificando que nos últimos anos tendeu-se para
uma superproteção que está a transformar as crianças em hedonistas e egoístas e
de como é imperativo tornar as crianças mais flexíveis e adaptáveis.
Sugestão
de leitura:
“O Pequeno Ditador” de
Javier Urra, Editores Esfera dos Livros
Sobre
o livro o autor refere que o pequeno ditador é alguém que aprendeu
que pode impor a sua vontade e que entende que o outro não vale nada. Para ele
é o "eu", o "para mim", o "comigo".
Este artigo foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.
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