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domingo, 16 de dezembro de 2012

CHORUDOS MISTÉRIOS

por Luiz de Mont'André



Como de costume, li este ano mais um Camilo, prática que já vem de alguns anos a esta parte, a conselho de minha avô Georgina: «Quem a escrita quer melhorar a Camilo deve tornar.» Ou não pertencesse ela à segunda espécie de miguelistas na classificação da sobrinha progressista do reaccionário António Sousa Homem, outro macróbio camiliano com mais de dois carros de anos: «A minha sobrinha alega que apenas existem três tipos de miguelistas hoje em dia: o primeiro, é composto de remediados descendentes dos fidalgos transmontanos e minhotos; o segundo, constituído de leitores de Camilo (à falta do próprio Camilo); o terceiro, contando apenas comigo a representá-lo, sentado à mesa da biblioteca no eremitério de Moledo, manejando a velha Parker que herdei e que ela herdará. Conto que a caneta a faça um nadinha conservadora. O resto vai por si» (Um Promontório em Moledo – Crónicas de Um Reacionário Minhoto, Bertrand, 2011, págs. 151-152, «O Senhor Marquês de Chaves e Outras Minudências da Pátria»).

Pois este ano estou virado para os grandes romances: reli Guerra e Paz. Não, não se trata de repetir a consabida fórmula dos que só nos aparecem a dizer que releram isto ou aquilo, nunca que leram, o que incita a concluir que conseguem reler sem ler, apanágio por certo de adiantados mentais que assim realizam verdadeiramente a quadratura do círculo, de que um modesto leitor nada sabe – quod nihil scitur, como da «mui nobre e alta ciência» confessava o nosso Francisco Sanches, percursor de Monsieur Descartes. Mas Guerra e Paz já eu lera em tenra idade, já lá vão portanto bons anos (receio que os melhores), saga que conta bem as suas 1600 ou 1700 páginas, mas que o leitor só lamenta que não estire por outras tantas; e agora acabei de levar a cabo estes Mistérios de Lisboa, três volumes numa velha edição do Círculo de Leitores, aí de 1980, que fazem bem umas 750 páginas por junto.

Até hoje é certamente o romance mais chato que já li de Camilo, e eu já lhe li uns quantos, pelo que não será dizer pouco. Custou a acabar. Paradoxalmente este romance originou um filme de êxito do realizador chileno Raul Ruiz. Depois de acabar de ler esta chatice, custa a crer; mas, se calhar, no cinema, com outro ritmo, a coisa – quer dizer, o repolhudo melodrama ensopado de comoção e lágrimas de que desta vez Camilo usou e principalmente abusou – talvez seja tragável. Não sei, não vi, não quero ver, mas dou de barato que sim.

A obra parece provir mais ou menos direitamente do romance-folhetim Mistérios de Paris, de Eugène Sue, que em meados do século XIX conheceu um êxito tremendo e foi copiado por toda a Europa. Houve mistérios de Londres, mistérios de Berlim, e portanto, em Portugal, obrigatoriamente mistérios de Lisboa, da pena do nosso Camilo, que aproveitou a deixa e até reincidiu lá mais ao diante com outros mistérios, desta feita com os Mistério de Fafe; e até o velho Castilho, pena mais recta-pronúncia do que romanesca (embora aquilo não tenha necessariamente de matar isto: prova, o mesmo Camilo), lá se foi descosendo com os seus Mil e Um Mistérios, ambientados por sua vez na Bairrada (curiosamente disponíveis em linha!). Dos mistérios da Bairrada o mais sápido e sábio consta que continua a ser o do leitão à dita, regado com «frisante» frappé. E quem o experimentar dificilmente discrepará.

Estas boleias eram (continuam a ser) muito aproveitadas: por exemplo, à voga da Chute d’un ange, de Lamartine, e do Roman d’un homme pauvre, de Octave Feuillet, respondeu o nosso visconde de Correia Botelho com a sua Queda de Um Anjo, o seu Romance de um Homem Rico (e cuido que até com um Romance de Um Homem Pobre, a menos que seja tradução do de Feuillet), em que, valha a verdade, não pilhou ou inverteu senão os títulos. Reconheça-se porém que desde a invenção da imprensa e o advento da escolaridade obrigatória, reforçada pelos cursos de escrita criativa, o escritor novel não atina facilmente com títulos originais cabonde para baptizar com foros de novidade a sobejidão de partos espirituais da imaginativa, assim continuamente arroteada, de tanto cidadão – observa a minha boa avô, que me dá ainda conta do último caso de repetição de títulos de que teve notícia: a recente Création du monde, de Jean d’Ormesson (2006), depois da mais antiga Criação do Mundo, de Miguel Torga. Repetição certamente fortuita, mas por isso mesmo ainda mais significativa da inópia de títulos por estrear para tanto trabalhador intelectual, e da extrema dificuldade com que se debaterá neste particular a legião de autores registados na sociedade dos mesmos.

Os mistérios lisboetas foram publicado em folhetins no diário portuense O Nacional. São de Lisboa, mas vieram a lume no Porto. Pinto da Costa, se andasse por cá nesse tempo, havia de ter reclamado, sem falta. Informa Alexandre Cabral, no prefácio, que Camilo publicou estes folhetins no ano de 1854: foi o segundo romance do autor, tinha ele 29 anos, depois de se estrear com Anátema, já sem falar em Maria, não me Mates, Que Sou Tua Mãe! – um começo prometedor. Apetece dizer que já então parece que havia de ser o que depois foi; mas não: depois foi muitíssimo melhor.

Mas, quanto aos Mistérios, nem sei por onde começar: a história é uma girândola louca de acontecimentos e de personagens, a acção derrama-se pelas sete partidas do mundo: Portugal, França, Bélgica, Inglaterra, África, Japão, Brasil. É um mundo excessivo, sem lugar para a moderação nem para o bom senso rotineiro e feliz. Até as boas qualidades são abnegações heróicas, dignas de coroa e altar; dos crimes, então, melhor nem falar.

O livro é varrido por um vendaval de violência emocional e física que chega a incomodar. Com ressalva do incesto e do homoerotismo, reservados, três décadas depois, à imaginativa dos autores dos Maias e do Barão de Lavos, respectivamente, apenas haverá excesso nem crime que não apareça neste livro. Tudo tremendo, os pecados e a expiação obrigada.

Anacleta dos Remédios, bacalhoeira, leva a filha ao suicídio querendo dá-la por amante a um duque (imagine-se). Pecado tremebundo; expiação, portanto, terrível. A celerada, compenetrando-se da enormidade do seu flagício (Camilo havia de apreciar o vocábulo: vá em sua lembrança), arrasta-se depois descalça e rota pelos caminhos de Portugal, vagueando e rezando, ao frio, ao vento, à chuva, com o céu por tecto e as estrelas por luzeiro, e vai comendo de esmola só pão e água. Consome nisso anos. Boa saúde – férrea – devia de ter a penitente para aguentar assim tanta chuva e tanto frio com aquele mantimento. Leva anos até ser perdoada por Deus, e morrer então descansada, absolvida por padre Dinis. Este homem misterioso é a mola – o pivot, como dizem agora na TV – do enredo. Ao longo do livro vai acudindo a todo o lado, nem sucede episódio em que não apareça. É uma espécie de anjo do Senhor, «instrumento cego de Deus», escreve Camilo.

Resumindo: obra algo coriácea, nunca li nada de Camilo que deixe tanto que desejar. Desta feita nem sequer a língua escapa. Aos 29 anos o autor está ainda longe do seu esplendor como estilista e mestre exímio da língua portuguesa, e isso sente-se nestas páginas. Sente-se, e o leitor ressente-se da estafa maior da marca. Mas para o ano há mais Camilo, mormente o velho Camilo, ou pelo menos o de Coração, Cabeça e Estômago, A Queda de Um Anjo, Novelas do Minho, A Brasileira de Prazins, talvez a obra-prima, e, para a cascalhada grossa, as comédias do Morgado de Fafe Amoroso e em Lisboa, e sobretudo Eusébio Macário e A Corja, a arremedar os naturalistas da «ideia nova», e que compensam largamente os maiores desvarios ultra-românticos e outras verduras da mocidade. E, mistérios por mistérios, antes os de Fafe, mais puxados aos vernáculo, e em que sempre se vai exercitando alguma justiça da mesma procedência, para desfastio das demasias do sentimentalismo.

Não se recomenda pois a leitura destes mistérios alfacinhas, salvo que o leitor seja um fanático admirador do homem de São Miguel de Seide. Parece que o livro foi até recentemente um êxito de vendas, «coisa espantosa», para usar um título do seu autor. Aposto que, se muitos o compraram, poucos o terão lido até ao fim.

Terminam assim tantos mistérios: «Consegui o que o seu cadáver fosse enterrado na sepultura imediata… O mundo ignora que estas duas sepulturas são o leito nupcial daqueles dois desgraçados.»

Ah, o ultra-romantismo! Como se já não bastasse sem o «ultra». Depois disso o nosso homem melhorou muito; mas, convenhamos, aos 29 anos… Palpita-me que andaria ali míngua de saias com menos «mistérios», mais palpáveis… Sim, tais empolamentos melodramáticos costumam ser sintoma dessas carências. Ana Plácido ainda vinha longe. Também aqui, cherchez la femme, ou a sua falta. Um sujeito com o seu exutório e quantum satis do eterno feminino não sói cogitar muito em cemitérios…

Mas vou-me cerrando por onde comecei: não haja ano sem o seu Camilo. Langue oblige. E, nestes dias de medra do portinglês, mais do que nunca.


Pois não só a «gramática da vida», também a da língua pede tento e reflexão. E, cara Francisca, para se melhorar o conhecimento e domínio desta última, o único meio é conversar com mão diurna e nocturna o que Camilo chamava «caldeirada de favas clássicas, com as quais o espírito opila, mas a língua cresce». Ingerindo, esmoendo e digerindo dessas caldeiradas, entre as quais as da cozinha camiliana, a língua... são favas contadas.

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