Como de costume, li este ano
mais um Camilo, prática que já vem de
alguns anos a esta parte, a conselho de minha avô Georgina: «Quem a escrita
quer melhorar a Camilo deve tornar.» Ou não pertencesse ela à segunda espécie
de miguelistas na classificação da sobrinha progressista do reaccionário António
Sousa Homem, outro macróbio camiliano com mais de dois carros de anos: «A minha
sobrinha alega que apenas existem três tipos de miguelistas hoje em dia: o
primeiro, é composto de remediados descendentes dos fidalgos transmontanos e
minhotos; o segundo, constituído de leitores de Camilo (à falta do próprio Camilo);
o terceiro, contando apenas comigo a representá-lo, sentado à mesa da
biblioteca no eremitério de Moledo, manejando a velha Parker que herdei e que
ela herdará. Conto que a caneta a faça um nadinha conservadora. O resto vai por
si» (Um Promontório em Moledo – Crónicas
de Um Reacionário Minhoto, Bertrand, 2011, págs. 151-152, «O Senhor Marquês
de Chaves e Outras Minudências da Pátria»).
Pois este ano estou virado para
os grandes romances: reli Guerra e Paz.
Não, não se trata de repetir a consabida fórmula dos que só nos aparecem a
dizer que releram isto ou aquilo, nunca que leram, o que incita a concluir que
conseguem reler sem ler, apanágio por certo de adiantados mentais que assim
realizam verdadeiramente a quadratura do círculo, de que um modesto leitor nada
sabe – quod nihil scitur, como da
«mui nobre e alta ciência» confessava o nosso Francisco Sanches, percursor de Monsieur
Descartes. Mas Guerra e Paz já eu
lera em tenra idade, já lá vão portanto bons anos (receio que os melhores), saga
que conta bem as suas 1600 ou 1700 páginas, mas que o leitor só lamenta que não
estire por outras tantas; e agora acabei de levar a cabo estes Mistérios de Lisboa, três volumes numa velha edição do Círculo de Leitores, aí de 1980,
que fazem bem umas 750 páginas por junto.
Até hoje é certamente o romance
mais chato que já li de Camilo, e eu já lhe li uns quantos, pelo que não será
dizer pouco. Custou a acabar. Paradoxalmente este romance originou um filme de êxito
do realizador chileno Raul Ruiz. Depois de acabar de ler esta chatice, custa a
crer; mas, se calhar, no cinema, com outro ritmo, a coisa – quer dizer, o repolhudo
melodrama ensopado de comoção e lágrimas de que desta vez Camilo usou e
principalmente abusou – talvez seja tragável. Não sei, não vi, não quero ver,
mas dou de barato que sim.
A obra parece provir mais ou
menos direitamente do romance-folhetim Mistérios
de Paris, de Eugène Sue, que em meados do século XIX conheceu um êxito tremendo
e foi copiado por toda a Europa. Houve mistérios de Londres, mistérios de
Berlim, e portanto, em Portugal, obrigatoriamente mistérios de Lisboa, da pena
do nosso Camilo, que aproveitou a deixa e até reincidiu lá mais ao diante com outros
mistérios, desta feita com os Mistério de
Fafe; e até o velho Castilho, pena mais recta-pronúncia do que romanesca (embora
aquilo não tenha necessariamente de
matar isto: prova, o mesmo Camilo), lá
se foi descosendo com os seus Mil e Um
Mistérios, ambientados por sua vez na Bairrada (curiosamente disponíveis em
linha!). Dos mistérios da Bairrada o mais sápido e sábio consta que continua a
ser o do leitão à dita, regado com «frisante» frappé. E quem o experimentar dificilmente discrepará.
Estas boleias eram (continuam a
ser) muito aproveitadas: por exemplo, à voga da Chute d’un ange, de Lamartine, e do Roman d’un homme pauvre, de Octave Feuillet, respondeu o nosso
visconde de Correia Botelho com a sua Queda
de Um Anjo, o seu Romance de um Homem
Rico (e cuido que até com um Romance
de Um Homem Pobre, a menos que
seja tradução do de Feuillet), em que, valha a verdade, não pilhou ou inverteu
senão os títulos. Reconheça-se porém que desde a invenção da imprensa e o advento
da escolaridade obrigatória, reforçada pelos cursos de escrita criativa, o
escritor novel não atina facilmente com títulos originais cabonde para baptizar
com foros de novidade a sobejidão de partos espirituais da imaginativa, assim continuamente
arroteada, de tanto cidadão – observa a minha boa avô, que me dá ainda conta do
último caso de repetição de títulos de que teve notícia: a recente Création du monde, de Jean d’Ormesson
(2006), depois da mais antiga Criação do
Mundo, de Miguel Torga. Repetição certamente fortuita, mas por isso mesmo
ainda mais significativa da inópia de títulos por estrear para tanto
trabalhador intelectual, e da extrema dificuldade com que se debaterá neste
particular a legião de autores registados na sociedade dos mesmos.
Os mistérios lisboetas foram publicado
em folhetins no diário portuense O
Nacional. São de Lisboa, mas vieram a lume no Porto. Pinto da Costa, se andasse
por cá nesse tempo, havia de ter reclamado, sem falta. Informa Alexandre Cabral,
no prefácio, que Camilo publicou estes folhetins no ano de 1854: foi o segundo
romance do autor, tinha ele 29 anos, depois de se estrear com Anátema, já sem falar em Maria, não me Mates, Que Sou Tua Mãe! –
um começo prometedor. Apetece dizer que já então parece que havia de ser o que
depois foi; mas não: depois foi muitíssimo melhor.
Mas, quanto aos Mistérios, nem sei por onde começar: a
história é uma girândola louca de acontecimentos e de personagens, a acção derrama-se
pelas sete partidas do mundo: Portugal, França, Bélgica, Inglaterra, África,
Japão, Brasil. É um mundo excessivo, sem lugar para a moderação nem para o bom
senso rotineiro e feliz. Até as boas qualidades são abnegações heróicas, dignas
de coroa e altar; dos crimes, então, melhor nem falar.
O livro é varrido por um
vendaval de violência emocional e física que chega a incomodar. Com ressalva do
incesto e do homoerotismo, reservados, três décadas depois, à imaginativa dos
autores dos Maias e do Barão de Lavos, respectivamente, apenas
haverá excesso nem crime que não apareça neste livro. Tudo tremendo, os pecados
e a expiação obrigada.
Anacleta dos Remédios,
bacalhoeira, leva a filha ao suicídio querendo dá-la por amante a um duque
(imagine-se). Pecado tremebundo; expiação, portanto, terrível. A celerada, compenetrando-se
da enormidade do seu flagício (Camilo havia de apreciar o vocábulo: vá em sua
lembrança), arrasta-se depois descalça e rota pelos caminhos de Portugal,
vagueando e rezando, ao frio, ao vento, à chuva, com o céu por tecto e as
estrelas por luzeiro, e vai comendo de esmola só pão e água. Consome nisso
anos. Boa saúde – férrea – devia de ter a penitente para aguentar assim tanta
chuva e tanto frio com aquele mantimento. Leva anos até ser perdoada por Deus,
e morrer então descansada, absolvida por padre Dinis. Este homem misterioso é a
mola – o pivot, como dizem agora na
TV – do enredo. Ao longo do livro vai acudindo a todo o lado, nem sucede episódio
em que não apareça. É uma espécie de anjo do Senhor, «instrumento cego de Deus»,
escreve Camilo.
Resumindo: obra algo coriácea,
nunca li nada de Camilo que deixe tanto que desejar. Desta feita nem sequer a
língua escapa. Aos 29 anos o autor está ainda longe do seu esplendor como
estilista e mestre exímio da língua portuguesa, e isso sente-se nestas páginas.
Sente-se, e o leitor ressente-se da estafa maior da marca. Mas para o ano há
mais Camilo, mormente o velho Camilo, ou pelo menos o de Coração, Cabeça e Estômago, A
Queda de Um Anjo, Novelas do Minho,
A Brasileira de Prazins, talvez a
obra-prima, e, para a cascalhada grossa, as comédias do Morgado de Fafe Amoroso e em
Lisboa, e sobretudo Eusébio Macário e A Corja, a arremedar os naturalistas da
«ideia nova», e que compensam largamente os maiores desvarios ultra-românticos
e outras verduras da mocidade. E, mistérios por mistérios, antes os de Fafe, mais
puxados aos vernáculo, e em que sempre se vai exercitando alguma justiça da
mesma procedência, para desfastio das demasias do sentimentalismo.
Não se recomenda pois a leitura
destes mistérios alfacinhas, salvo que o leitor seja um fanático admirador do homem
de São Miguel de Seide. Parece que o livro foi até recentemente um êxito de
vendas, «coisa espantosa», para usar um título do seu autor. Aposto que, se
muitos o compraram, poucos o terão lido até ao fim.
Terminam assim tantos mistérios:
«Consegui o que o seu cadáver fosse enterrado na sepultura imediata… O mundo
ignora que estas duas sepulturas são o leito nupcial daqueles dois
desgraçados.»
Ah, o ultra-romantismo! Como se
já não bastasse sem o «ultra». Depois disso o nosso homem melhorou muito; mas,
convenhamos, aos 29 anos… Palpita-me que andaria ali míngua de saias com menos
«mistérios», mais palpáveis… Sim, tais empolamentos melodramáticos costumam ser
sintoma dessas carências. Ana Plácido ainda vinha longe. Também aqui, cherchez la femme, ou a sua falta. Um
sujeito com o seu exutório e quantum
satis do eterno feminino não sói cogitar muito em cemitérios…
Mas vou-me cerrando por onde
comecei: não haja ano sem o seu Camilo.
Langue oblige. E, nestes dias de medra
do portinglês, mais do que nunca.
Pois não só a «gramática da vida», também a da língua
pede tento e reflexão. E, cara Francisca, para se melhorar o conhecimento e
domínio desta última, o único meio é conversar com mão diurna e nocturna o que
Camilo chamava «caldeirada de favas clássicas, com as quais o espírito opila,
mas a língua cresce». Ingerindo, esmoendo e digerindo dessas caldeiradas, entre
as quais as da cozinha camiliana, a língua... são favas contadas.
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