(Excerto d’As Crónicas da Bicicleta)
Dizia o decano das letras
catalãs, Josep Pla, que era galináceo o voo em autocarro. Pois em bicicleta,
está bem de ver, será de noitibó, cuja existência se limita na sua quase
totalidade aos domínios do restolho, sempre vulnerável às sevícias arbustíferas,
às aparições dos mais esquivos animais silvestres e aos caprichosos humores
atmosféricos. É o que tenho confirmado, metendo entre as pernas serras,
estradas do império augusto, tímidas veredas, trilhos primaveris, canadas de
rebanhos, enfim o Portugal escondido, sempre benzido pelos apetites do clima,
mais temperamentais do que inclementes com esta morada ibérica.
Assim foi na Batalha um
passeio iniciado às portas dessa maravilha gótica, que nos levou a uma clareira
banhada pelo sangue das papoilas, já seguíamos ofegantes pela cumeada da Serra
de Aire. O vento agitava em ondas regulares a massa de pétalas vermelhas, num
efeito visual semelhante ao dos lanceiros portugueses encaixando uma carga da
cavalaria inimiga, nesse ardente 14 de Agosto de 1385. Mas as surpresas não se
apoucaram às invocações do quadrado condestável dessa mítica batalha. Houve em meio
do carreiro um moinho, como a pedra no célebre poema de Drummond. Para delícia
dos afoitos do pedal, o trilho subia um talude encostado à parede desse templo
de Ceres, em curva excêntrica, acabando por o atravessar sobre as telhas da
cobertura. (Um abraço in mente a Jean
Giono, outro andarilho, mas provençal, cantor da re rustica e moinhos, e cujo prelúdio vislumbrámos à altura do seu
telhado!)
Convém não esquecer que
rodávamos sobre terrenos mesozóicos, época geológica em que os grandes lagartos
reinaram sobre a Terra. E talvez fosse o ímpeto da contemplação paleontológica
que tanto ciclista fez afocinhar sobre o calcário jurássico: os foraminíferos e
outra bicharada feita rocha são ariscos a deixar-se observar a distâncias
superiores às da lupa e microscópio…
Não chegámos ao fim de tamanho
fartote campestre sem que soasse o chamamento entrecortado da cotovia, espécie
com pêlo na venta: haja vista a hirsuteza daquela crista de centurião!
Corações ao alto: havia
feira! Conhecêramos os nossos anfitriões em certo dia de intempérie serrana
para os lados da Estrela, encetando alegres diatribes pantagruélicas em redor de
fumegantes cabidelas de lebre. Na Batalha, retornámos (assim nos condenou
Nietzsche) à mesa e ao sangue, ainda que desta vez o assunto se materializasse
nas morcelas de arroz, outro prato positivamente medieval. E seiscentista: rezam
as crónicas que a cabidela de galinha foi iguaria favorita de D. João IV,
monarca verdadeiramente régio não só de ouvido, senão também de palato. Mas, voltando
à morceleza, e apesar de soberba, com a sua guarda avançada de vinha-d’alhos
devidamente aquartelada num baluarte azeiteiro, e uma indissociável, mista e
até mística trindade de sangue, cebola e arroz, os convivas protestaram: aqui
d’el rei, que não era da terra! – esganiçavam-se,
mas de papo bem cheio... Nisto havia muito da secular ingratidão lusitana, fui atirando
sibilino. E que mais podiam eles ver nesse sangue e arroz, senão a mácula da terra rossa sobre os alvos penhascos
cársicos das Serras de Aire e Candeeiros?
Outra batalha começava…
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