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sábado, 23 de junho de 2012

Batalha Campal

por Luiz de Mont'André


(Excerto d’As Crónicas da Bicicleta)

Dizia o decano das letras catalãs, Josep Pla, que era galináceo o voo em autocarro. Pois em bicicleta, está bem de ver, será de noitibó, cuja existência se limita na sua quase totalidade aos domínios do restolho, sempre vulnerável às sevícias arbustíferas, às aparições dos mais esquivos animais silvestres e aos caprichosos humores atmosféricos. É o que tenho confirmado, metendo entre as pernas serras, estradas do império augusto, tímidas veredas, trilhos primaveris, canadas de rebanhos, enfim o Portugal escondido, sempre benzido pelos apetites do clima, mais temperamentais do que inclementes com esta morada ibérica.

Assim foi na Batalha um passeio iniciado às portas dessa maravilha gótica, que nos levou a uma clareira banhada pelo sangue das papoilas, já seguíamos ofegantes pela cumeada da Serra de Aire. O vento agitava em ondas regulares a massa de pétalas vermelhas, num efeito visual semelhante ao dos lanceiros portugueses encaixando uma carga da cavalaria inimiga, nesse ardente 14 de Agosto de 1385. Mas as surpresas não se apoucaram às invocações do quadrado condestável dessa mítica batalha. Houve em meio do carreiro um moinho, como a pedra no célebre poema de Drummond. Para delícia dos afoitos do pedal, o trilho subia um talude encostado à parede desse templo de Ceres, em curva excêntrica, acabando por o atravessar sobre as telhas da cobertura. (Um abraço in mente a Jean Giono, outro andarilho, mas provençal, cantor da re rustica e moinhos, e cujo prelúdio vislumbrámos à altura do seu telhado!)

Convém não esquecer que rodávamos sobre terrenos mesozóicos, época geológica em que os grandes lagartos reinaram sobre a Terra. E talvez fosse o ímpeto da contemplação paleontológica que tanto ciclista fez afocinhar sobre o calcário jurássico: os foraminíferos e outra bicharada feita rocha são ariscos a deixar-se observar a distâncias superiores às da lupa e microscópio…
Não chegámos ao fim de tamanho fartote campestre sem que soasse o chamamento entrecortado da cotovia, espécie com pêlo na venta: haja vista a hirsuteza daquela crista de centurião!

Corações ao alto: havia feira! Conhecêramos os nossos anfitriões em certo dia de intempérie serrana para os lados da Estrela, encetando alegres diatribes pantagruélicas em redor de fumegantes cabidelas de lebre. Na Batalha, retornámos (assim nos condenou Nietzsche) à mesa e ao sangue, ainda que desta vez o assunto se materializasse nas morcelas de arroz, outro prato positivamente medieval. E seiscentista: rezam as crónicas que a cabidela de galinha foi iguaria favorita de D. João IV, monarca verdadeiramente régio não só de ouvido, senão também de palato. Mas, voltando à morceleza, e apesar de soberba, com a sua guarda avançada de vinha-d’alhos devidamente aquartelada num baluarte azeiteiro, e uma indissociável, mista e até mística trindade de sangue, cebola e arroz, os convivas protestaram: aqui d’el rei, que não era da terra! – esganiçavam-se, mas de papo bem cheio... Nisto havia muito da secular ingratidão lusitana, fui atirando sibilino. E que mais podiam eles ver nesse sangue e arroz, senão a mácula da terra rossa sobre os alvos penhascos cársicos das Serras de Aire e Candeeiros?

Outra batalha começava…

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