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domingo, 24 de junho de 2012

Carlos de Oliveira (1921-1981), Finisterra

por Mita Jacinto

Aço na forja dos dicionários
as palavras  são feitas de
aspereza:
o primeiro vestígio da beleza
é a cólera dos versos necessários

Mãe  Pobre, 1945


seguindo o fio
da tinta
que desenha as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor.

Micropaisagem, 1969


O neo-realismo, a intervenção que não recusa, antes assume e paulatinamente vai aprofundando até ao seu último romance “Finisterra – paisagem e povoamento”.

Ler esta prosa poética resulta numa estranheza íntima que não se percebe logo porque nos mergulha com aquela criança sentada no osso de baleia que teimosamente pretende reconstruir, de variadas formas, copiadas no entanto da obsessão familiar que a criança mimetiza, a paisagem do peso da alma que a assola.

Estranha-se que a casa e o jardim desgrenhado e de contornos mais incertos que as dunas em contínua progressão percorridas elas, o jardim e a casa pela salinidade da bruma que regurgita túrgida pelas gisandras dela prenhes.

Estranha-se que os silêncios dos diálogos não nos atinjam a dormência da alma mas se atirem como  areias grossas como penedos, contra a mica das janelas.

Estranha-se sobretudo que a criança e a família se tenham transformado na casa, no jardim e nas labaredas lá longe que reverberam nas dunas.

Estranha-se que este romance nos transporte a cada leitura à perfeita magia de um mundo que só a literatura poderia ter criado.

Estranha-se que fiquemos para sempre presos na vontade de reproduzir aquela paisagem, tão individualmente íntima e secreta. Fomos um dia aquela criança. Ai de quem nunca mais o seja. 

Fotografia por Mita Jacinto

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