Fernando Pessoa lamentava-se por não ser capaz de sentir sem
racionalizar, sendo que sempre que os seus sentidos captavam alguma coisa, a
sua mente apressava-se a intelectualizá-la. Assim acontece connosco, hoje em
dia, em relação a todos os filmes que vemos – mas não lamentamos. Não temos a capacidade de ver e sentir um filme sem começar a
emprestar-lhe uma dimensão muito maior do que, muitas vezes, o próprio filme
tem. Porém, não nos apercebemos do erro que estamos a cometer.
Vi hoje um documentário de Sophie Fiennes, The
Pervert's Guide to Cinema, que filma um conhecedor Slavoj
Žižek, psicólogo e psicanalista, a analisar inúmeros filmes sob a perspectiva
das teorias freudianas. Muitos autores são incluídos nesta extensa reflexão
sobre as pulsões cinematográficas, uns com maior coerência, outros com menor –
Hitchcock, Fritz Lang, Ingmar Bergman, Francis Ford Coppola, Kubrick, Chaplin,
David Lynch... Um documentário a não perder, mas que por vezes exagera na
profundidade da sua análise.
Falar de Alfred Hitchcock é falar de Sigmund Freud. O mítico realizador
era um confesso admirador das teorias do austríaco, autor de obras como a
famosíssima A Interpretação dos Sonhos, e a utilização dos modelos
psicanalíticos nos filmes do realizador britânico é por demais evidente, sendo
inegável que Hitchcock estava para o cinema como Salvador Dalí estava para a
pintura, ambos interpretando à sua maneira a visão freudiana dos sonhos. Em Psycho,
a forma como os três andares da casa de Norman representam o modelo estrutural
da psique, id, ego e superego, é clara; em Os Pássaros, a relação
incestuosa e super protectora da mãe para com o seu filho é uma expressão das
pulsões sexuais e do complexo de Édipo sobre o qual Freud disserta; no filme Vertigo
(ou, em português, o absurdo A Mulher Que Viveu Duas Vezes), está bem
patente o modo como para haver uma afirmação do seu desejo, primeiro o homem
tem de humilhar e mortificar o desejo da mulher, impondo-se sexualmente sobre
ela antes de passar ao acto em si.
Contudo, o mesmo não acontece com os filmes de muitos outros
realizadores: reduzir a loucura de Lynch a mero calculismo psicanalítico é
cruel. O próprio autor já declarou por diversas vezes que inclui certas coisas
nos seus filmes simplesmente porque lhe apetece incluí-las. Em títulos como Veludo
Azul, Mulholland Drive, Estrada Perdida ou Um Coração
Selvagem, Lynch vai muito mais para além de Freud, ficando simultaneamente
muito aquém. A sua insanidade cinematográfica é um misto de lógica e incongruência,
sendo impossível caracterizar os seus filmes e a sua forma de pensar de acordo
com um autor definido, ou dizer “ele fez isto porque queria dizer aquilo”.
Esqueçam. Não é possível. E talvez seja mesmo aí que reside a beleza dos filmes
de David Lynch.
Claro que é possível fazer uma reflexão psicanalítica de
autores como Gaspar Noé, Christopher Nolan, Ingmar Bergman, Fritz Lang, Murnau,
Coppola, Kubrick ou Chaplin (este sendo já algo rebuscado). Mas não podemos
partir daí para começar a fazer semelhante abordagem a todos os filmes que nos
aparecem a fime. Elevar uma simples comédia romântica a pulsões sexuais ou um Saw a pulsões de morte ou mesmo um
musical à interpretação dos sonhos é absurdo. E houve um ponto nesse
documentário – tal como há um ponto em todos nós – em que se começou a
enveredar por caminhos ilógicos e sem sentido. Nem tudo tem um significado
profundo e psicologicamente incerto.
É aí que incorremos no erro: por vezes, por maior dimensão
de significância que um filme possa assumir, faz-nos bem recostar-nos e
apreciá-lo sensitivamente; não desatar numa complexa análise intelectual. Por
vezes, há que desfrutar verdadeiramente do filme, não começar a pensar em tudo
o que ele encerra. Simplesmente ver – ou, como diz a sabedoria popular, comer –
e calar. Desfrutem inocentemente do cinema, amigos, pois se não o fizerem, cedo
se verão engolidos por uma espiral de raciocínio e intelectualização da qual,
tal como Fernando Pessoa, lamentarão um dia não poder escapar.
FIM
'Pervert's guide to cinema'
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