Quero ignorado,
e calmo
Por ignorado, e
próprio
Por calmo,
encher meus dias
De não querer
mais deles.
Aos que a
riqueza toca
O ouro irrita a
pele.
Aos que a fama
bafeja
Embacia-se a
vida.
Aos que a
felicidade
É sol, virá a
noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é
grato.
Pessoa
sempre me fascinou. Não por ser um génio no que toca à métrica dos poemas, mas
pela sonoridade que a sua poesia provoca em quem lê. Para o texto de hoje,
escolhi o que costumo chamar ‘o poema dos contrários’.
É
raro, muito raro, interpretar poesia por escrito. Creio que esse trabalho deve
estar reservado para os eruditos e grandes estudiosos. A interpretação é
essencialmente sentida e os sentimentos, embora se possam descrever, nunca
podem ser sentidos por aqueles que não os sentiram em primeiro lugar. Se eu
interpreto, no meu íntimo, um poema como belo, então o leitor destas palavras
está a interpretar a minha interpretação que diz que é bela. E, das duas, uma:
ou ele desenvolverá um sentimento equiparável ao que eu expressei, ou não. Mas
nunca desenvolverá o mesmo sentimento, mesmo que a única forma de expressar o
que sente seja utilizar a mesma palavra que eu utilizei – porque, à partida, o
sentimento seria o mesmo. É este ‘não ter a certeza do outro’, este ‘ser quase
o outro, mas nunca ser’ que nos torna indivíduos. É a capacidade que temos de
nos identificar com o outro sem ter a certeza se essa identificação é real ou
não, que traça uma barreira entre mim e o leitor. Neste preciso momento, está a
ler o que eu escrevi há umas horas atrás e a sentir alguma coisa. Mas por mais
que tente sentir o que eu sinto ao escrever, por mais que tente ‘pôr-se no meu
lugar’, nunca o conseguirá, porque nunca deixará de ser o leitor que lê o que
eu escrevo, com uma discrepância de tempo e espaço consideráveis o suficiente
para não sermos a mesma pessoa.
Note-se
aqui que não estou só a constatar o óbvio. Não estou somente a dizer que o
leitor não pode ser o escritor, que duas pessoas não podem ser uma. O que quero
expressar ultrapassa isso. Para além de sermos duas pessoas, com a ilusão de nos podermos identificar uma
com a outra ou de podermos sentir o mesmo perante uma situação, temos uma
habilidade – que anteriormente foi referida por Ortega y Gasset no seu texto
Ensimismamiento y Alteración (versão original aqui e versão portuguesa aqui) –
que é a de a pessoa se poder ensimesmar.
De se poder dar conta de si, de ter a habilidade ou capacidade de se virar para
dentro e de ela mesma ser ela mesma. É só porque temos esta capacidade que há
efectivamente o poder de decisão. Depois de uma reflexão, temos enfim a
qualidade de nos darmos ao mundo através da expressão do resultado dessa
recolha.
Nas palavras de Ortega:
(...)
são muito poucos, digo, os povos que nos últimos tempos gozavam já da
tranquilidade de horizontes que permite escolher de verdade, recolher-se na
reflexão. Quase todo o mundo está alterado, e na alteração o homem perde o seu
atributo mais essencial: a possibilidade de meditar, de recolher-se dentro de
si mesmo, para se pôr de acordo consigo mesmo e precisar, para si mesmo, aquilo
que crê; aquilo que estima de verdade e o que deveras detesta. A alteração o
obnubila, o cega, o obriga a actuar mecanicamente em um frenético sonambulismo.
(...)
Portanto,
o que acaba por nos faltar é essa capacidade de reconhecimento de nós mesmos. E
por que razão? Porque tudo está a mudar a um ritmo que o nosso interior não
consegue acompanhar. Essa mudança é frenética e ela própria é a responsável
pela ilusão do exterior em que vivemos. Estamos embaciados pela fama (l.7 e 8)
e aos poucos, a convencer-nos de que já não há ensimesmamento que nos valha.
Que relação terá isto com a nossa identificação com o outro? Aquela de
pensarmos que rapidamente o outro compreenderá o que dizemos sem nós mesmos
termos reflectido na profundidade das nossas palavras.
Pessoa
situa-se exactamente no final deste texto: ele ensimesmou-se. Teve o privilégio
de reconhecer que essa capacidade era necessária para poder produzir algo que
viesse do seu íntimo. Quando dizemos que já não há bons poetas-filósofos, que
já não há quem sabia escrever como deve ser, estamos a constatar que a
humanidade está a perder a capacidade de se ensimesmar.
O
Humano é ele-mesmo. E só não se confunde com o outro quando reconhece que tem
íntimo. Quando não acontece? Uma massa amorfa.
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