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quinta-feira, 12 de julho de 2012

Ensimesmamento: é necessário?

por Laura Sequeira

Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.
Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.
Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é grato.

Fernando Pessoa



Pessoa sempre me fascinou. Não por ser um génio no que toca à métrica dos poemas, mas pela sonoridade que a sua poesia provoca em quem lê. Para o texto de hoje, escolhi o que costumo chamar ‘o poema dos contrários’.

É raro, muito raro, interpretar poesia por escrito. Creio que esse trabalho deve estar reservado para os eruditos e grandes estudiosos. A interpretação é essencialmente sentida e os sentimentos, embora se possam descrever, nunca podem ser sentidos por aqueles que não os sentiram em primeiro lugar. Se eu interpreto, no meu íntimo, um poema como belo, então o leitor destas palavras está a interpretar a minha interpretação que diz que é bela. E, das duas, uma: ou ele desenvolverá um sentimento equiparável ao que eu expressei, ou não. Mas nunca desenvolverá o mesmo sentimento, mesmo que a única forma de expressar o que sente seja utilizar a mesma palavra que eu utilizei – porque, à partida, o sentimento seria o mesmo. É este ‘não ter a certeza do outro’, este ‘ser quase o outro, mas nunca ser’ que nos torna indivíduos. É a capacidade que temos de nos identificar com o outro sem ter a certeza se essa identificação é real ou não, que traça uma barreira entre mim e o leitor. Neste preciso momento, está a ler o que eu escrevi há umas horas atrás e a sentir alguma coisa. Mas por mais que tente sentir o que eu sinto ao escrever, por mais que tente ‘pôr-se no meu lugar’, nunca o conseguirá, porque nunca deixará de ser o leitor que lê o que eu escrevo, com uma discrepância de tempo e espaço consideráveis o suficiente para não sermos a mesma pessoa.

Note-se aqui que não estou só a constatar o óbvio. Não estou somente a dizer que o leitor não pode ser o escritor, que duas pessoas não podem ser uma. O que quero expressar ultrapassa isso. Para além de sermos duas pessoas, com a ilusão de nos podermos identificar uma com a outra ou de podermos sentir o mesmo perante uma situação, temos uma habilidade – que anteriormente foi referida por Ortega y Gasset no seu texto Ensimismamiento y Alteración (versão original aqui e versão portuguesa aqui) – que é a de a pessoa se poder ensimesmar. De se poder dar conta de si, de ter a habilidade ou capacidade de se virar para dentro e de ela mesma ser ela mesma. É só porque temos esta capacidade que há efectivamente o poder de decisão. Depois de uma reflexão, temos enfim a qualidade de nos darmos ao mundo através da expressão do resultado dessa recolha. 

Nas palavras de Ortega:
(...) são muito poucos, digo, os povos que nos últimos tempos gozavam já da tranquilidade de horizontes que permite escolher de verdade, recolher-se na reflexão. Quase todo o mundo está alterado, e na alteração o homem perde o seu atributo mais essencial: a possibilidade de meditar, de recolher-se dentro de si mesmo, para se pôr de acordo consigo mesmo e precisar, para si mesmo, aquilo que crê; aquilo que estima de verdade e o que deveras detesta. A alteração o obnubila, o cega, o obriga a actuar mecanicamente em um frenético sonambulismo. (...)

Portanto, o que acaba por nos faltar é essa capacidade de reconhecimento de nós mesmos. E por que razão? Porque tudo está a mudar a um ritmo que o nosso interior não consegue acompanhar. Essa mudança é frenética e ela própria é a responsável pela ilusão do exterior em que vivemos. Estamos embaciados pela fama (l.7 e 8) e aos poucos, a convencer-nos de que já não há ensimesmamento que nos valha. Que relação terá isto com a nossa identificação com o outro? Aquela de pensarmos que rapidamente o outro compreenderá o que dizemos sem nós mesmos termos reflectido na profundidade das nossas palavras.

Pessoa situa-se exactamente no final deste texto: ele ensimesmou-se. Teve o privilégio de reconhecer que essa capacidade era necessária para poder produzir algo que viesse do seu íntimo. Quando dizemos que já não há bons poetas-filósofos, que já não há quem sabia escrever como deve ser, estamos a constatar que a humanidade está a perder a capacidade de se ensimesmar.
O Humano é ele-mesmo. E só não se confunde com o outro quando reconhece que tem íntimo. Quando não acontece? Uma massa amorfa.

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