Às vezes –
as mais das vezes – é para o lado que me dá, ou seja, para o Sul.
Bate-me o
sol na fonte da preguiça, e fico com o azeite, os alhos, os coentros, tudo a
laurear aos dias. Agitam-se-me na vista searas douradas que o zéfiro vai ondulando
em direitura de uma faixa azul, lá longe. Engulo a saliva que a imaginação
tempera de sal e azeitona. E entrevejo uma casa branca, de piso térreo; pressinto
gaivotas e velhos dentro das tabernas, uma nuvem de moscas secular…
Certo, tudo
isto ideal, e, tirando-lhe o branco das casas e a carícia do sol, fica-se com o
Norte. O Sul, miragem de uma outra margem, já não existe, devassado, trespassado
que foi por aguilhões de betão, por bocas hiperbóreas e vândalas consumido: –
consumada a waste land. O pouco que
resta poupou-o somente a sua mesma exiguidade para albergar as hordas imbecis
de veraneantes.
Resta-nos o
nosso Sul pessoal: o lugar dentro na gente, a sul de nós mesmos, onde mora e
demora o tempo, a memória e o sentido… Que o outro Sul não volta.
E o velho
correio, cada vez menos…
Rebenta lá fora uma tempestade súbita: avisos
vermelhos à população e toda a parafernália de alertas, cuidados e caldos de
galinha… É quando sabe melhor o remanso da sala, a ouvir as persianas
agitando-se às estocadas do vento furibundo. No outro sofá, uma pilha de
revistas aguarda leitura próxima. Entre elas, a LER do mês, dedicada à críptica
Agustina, que me enviou minha avó Georgina, num intervalo das suas leituras do seu
dilecto conde.
Uma delícia, receber revistas pelo
correio! Ameniza a solidão e atenua a secura da correspondência
bancária/tributária tão cinzenta como o cinzento receptáculo de onde a extrai-o
diariamente. Apesar das troadas arcanas da nossa sibila – diz-me minha avó,
senhora fiel à velha escola das ideias claras e distintas à Monsieur Descartes,
ce chevalier français qui s’en allait
d’un si bon pas, que a boa da autora segue e pratica na escrita a maneira
do pato na água: ambos mergulham de vez em quando, e então deixamos de ver um e
de entender a outra, até que lá assomam uns metros ou frases à frente, e mais
imaginamos a custo do que sabemos ao certo por onde andou a ave, e o que disse a
romancista, – apesar disso, sempre é um pouco do velho mundo, do ar do tempo
real que vem até nós. E neste caso, também a lembrança da vovó: com a sua idade
canónica, mas sempre alerta, ainda se vai dando ao trabalho de ir aos correios
e espraiar a sua bela letra no rosto do sobrescrito que intrépidos carteiros do
bom Portugal e do vetusto Reino de Leão e Castela trazem até ao meu exílio
asturiano. Em dias tão propensos ao ruído, ao estrépito e movimento inútil,
estas relíquias do tempo da boa senhora dão um gosto pausado ao quotidiano.
Dantes, recebia cartas a rodos, todas de
solícitas amigas, que me proporcionaram as primeiras alegrias postais. Com o
advento do email, onde estão as
cartas de outrora? Adeus, cartas de amigas. Bem aviado estaria eu se dependesse
somente de vós a minha vida sentimental! A morte da carta, do papel, do «Cara
Maria Eduarda», etc., também representa a extinção de mais um e bom pretexto
para se escrever, e para se escrever bem: para mimar e apurar a língua. Já nem
falo da abjecção das caligrafias que por aí grassam, degradadas por uma
uniformização de estilos quase orwelliana. A caligrafia bem merecia uma nota à
parte, mas vou já denunciando a infâmia que se está a fazer ao ensino da letra manuscrita…
Tudo isto só para lamentar que, qual coronel
de Gabo, já ninguém me escreve. Pior: quando me escrevem, dou por mim a desejar
que o não tivessem feito, tal a qualidade da escrita com que me obsequiam. Certo,
vão restando sempre as tais honrosas excepções da praxe. Para essas, restará também
sempre um postal na volta do correio. Os outros que façam por merecê-lo...
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