Gerard Castello-Lopes |
Há quem diga que nunca há-de ler, que leu
e não gostou ou mais frequentemente que não consegue ler, mas eu cá muito para
mim duvido se alguma vez leram ou tentaram ler sem antes terem decidido o que
iam sentir ou precisavam de não sentir que isto de sentimentos tem muito que se
lhe diga e a ninguém é lícito querer fazer seus os sentires dos outros ainda
que se ache com toda a razão do mundo, se é que o mundo tem alguma, por pouca
que seja, mas também quem é que pode saber uma coisa dessas, ou mesmo quem é que
está interessado no discorrer sobre tal assunto, interesse interesse sim só
esse em aprender alguma coisa ou passar o cursor para baixo, que seca, que tem
isto a ver com literatura, tanta letra fechadinha por aí fora e a pontuação uma
miséria quem e que se lembraria de coisa assim, pois bem ainda assim mais um
esforçozinho que isto de ser diferente afinal por vezes tem surpresas e novos
mundos, uns que acabam outros que começam.
Disse
o revisor, Sim, o nome deste sinal é deleatur, usamo-lo, quando precisamos
suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e tanto vale para letras
soltas como para palavras completas, Lembra-me uma cobra que se tivesse
arrependido no momento de morder a causa, Bem observado, senhor doutor,
realmente, por muito agarrados que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria
diante da eternidade, Faça-me aí o desenho, mas devagar, É facílimo, basta
apanha-lhe o jeito, quem olhar distraidamente cuidará que a mão vai traçar o
terrível círculo, mas não, repare que não rematei o movimento aqui onde o tinha
começado, passei-lhe ao lado, por dentro, e agora vou continuar para baixo até
cortar a parte inferior da curva, afinal o que parece mesmo é a letra Q
maiúscula, nada mais, Que pena, um desenho que prometia tanto, Contentemo-nos
com a ilusão da semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me
posso exprimir em título profético, que o interesse da vida onde sempre esteve
sempre foi nas diferenças(...)
Quando
o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva,
perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca
nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado
consigo mesmo, uma vez que não ouvia mais ninguém no jardim do éden a quem
pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos,
todos eles, tal como só dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de
mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos,
desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo
poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após
outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta
abaixo.
Dos escritos (...) não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido
aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e
às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma de que o senhor
lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela
não ficou menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma
árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. (...)
tudo pode ser. (...) o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido
corrigido, e assim perguntou a Adão, Tu, como te chamas?, e o homem respondeu,
Sou Adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E
tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela
desnecessariamente uma vez que não
havia outra. deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até
logo, e foi à sua vida. então, ela primeira vez, adão disse para eva, Vamos
para a cama. (..) mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela
nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou
tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. por fora,
salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de minúsculos orifícios, o
atentado mal se percebe mas por dentro a procissão é outra, não tardará muito
que venha por aí abaixo o que tão firme havia perecido.
(...)
quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão
e eva havia tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se
tinham beneficiado alguma coisa da experiencia da vida campestre e a terceira
para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos
outros paraísos existentes no espaço celeste.
Acabastes de ler os inícios de “História do
Cerco de Lisboa “ e de “Caim” do polémico nobelizado José Saramago.
Dizíeis então exactamente o quê sobre Saramago?
José
Saramago, CAIM, Editorial Caminho, 2009, Lisboa, pp. 11-14
José
Saramago, HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA, Editorial Caminho, 1989, p. 11
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