Blogue de divulgação cultural, escrito por 28 pessoas. Um texto por dia, todos os dias.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Mãe, ainda sou o menino do retrato

por Manuela Livro


Era maio, mas podia ser setembro, como agora. A escola em pleno funcionamento. Os diretores de turma assoberbados com trabalho, como agora.

O Pedro, professor e diretor de turma, vem ter comigo e pede-me para estar presente numa reunião que vai ter com a mãe do Luís. O Pedro esclarece tratar-se de uma situação de abandono escolar. Entramos no gabinete e verifico que o Luís também está presente, sentado e de cabeça baixa. Perante a pergunta, por que razão o Luís não vem à escola, a resposta da mãe é rápida e sem qualquer hesitação: “O Luís não vem à escola porque não quer vir e se ele não quer vir, não posso fazer nada.”

É bom esclarecer que o Luís tem apenas 11 anos, tem um ar franzino e continua quieto, de cabeça baixa, sem esboçar um gesto que denuncie o que lhe vai “por dentro”. O diretor de turma pergunta à mãe se é o Luís que deve decidir ou ela que, como adulta e mãe, deve explicar ao Luís a importância da escola e fazer com que este compareça nas aulas todos os dias.

Senhor professor, riposta a mãe, o meu filho é que manda em mim, ele não me obedece, porque o senhor não sabe, mas o meu marido está nas Bermudas a trabalhar para ganhar dinheiro. O senhor não sabe, mas tínhamos muitas dívidas para pagar e então o meu marido emigrou e até disse ao meu filho que ele agora era o homem da casa e que teria de tomar conta de mim. Eu digo-lhe para vir para a escola, mas ele não quer e se ele não quer, não posso obrigar.

O diretor de turma lembrou aquela mãe que o Luís era apenas uma criança, que ela, com a sua atitude, estava a ser negligente e que desse modo teria de participar a situação à comissão de proteção de crianças e jovens.

Olhei para o Luís, continuava de cabeça baixa, nenhum sinal de revolta ou resignação, nenhuma demonstração de ser ele “o homem da casa” como dizia a sua mãe.

No silêncio do Luís, pareceu-me ouvi-lo dizer:

“Mãe, ainda sou
o menino do retrato,
tenho onze anos
e não quero ser o homem da casa.

Preciso que me ajudes e orientes, mãe.

Às vezes, as palavras que me dizes
são duras, mãe,
e eu só quero que percebas
que todo o meu corpo ainda está a crescer
e que ainda sou o menino
que quer adormecer nos teus olhos!

As palavras não ditas do Luís cruzaram-se com outras ditas por Eugénio de Andrade e a melancolia soou igual, mesmo que em sentido contrário.

Até amanhã. Um dia o Luís irá com as aves.


Este artigo foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

Sem comentários:

Enviar um comentário