Já ouviram aquela história do rapaz geek, tímido e socialmente inadaptado que inventa a rapariga perfeita na sua cabeça e se torna completamente incapaz de amar qualquer outra? De certo não vos parece nova a ideia de um criador que, no final de contas, se apaixona pela sua própria obra de arte. Sim, a história certamente não vos é estranha. Mas, por mais que ela já tenha sido contada vezes sem conta, garanto-vos que nunca o foi assim.
Calvin (Paul Dano), um jovem escritor que atingiu um sucesso estrondoso aos 19 anos com o lançamento do seu primeiro livro, tem um bloqueio criativo. Na tentativa de o soltar dessa pressão, o seu psicólogo, Dr. Rosenthal (Elliot Gould) manda Calvin escrever uma página sobre a primeira coisa que lhe vier à cabeça, mesmo que o resultado acabe por ser desastroso. Pouco confiante, o jovem escritor é surpreendido quando, depois de sonhar com uma rapariga, começa a escrever sobre ela e não consegue parar. A verdadeira surpresa dá-se, no entanto, quando essa rapariga, Ruby Sparks (Zoe Kazan), aparece na sua cozinha. Aparentemente, Ruby ultrapassa as barreiras da ficção e ganha corpo numa pessoa real. Ou quase real? Já lá chegamos.
O trailer colorido, divertido e com música apelativa irá provavelmente induzir-vos em erro. Não vos censuro se, como eu, se forem sentar na sala de cinema com o vosso pacote de pipocas na mão e a postura descontraída de quem vai ver o típico filme de Hollywood com actores bonitos, as piadas do costume e um final feliz.* O elenco, com alguns nomes sonantes como Annette Bening e António Banderas, também desperta a curiosidade do espectador, já para não mencionar o regresso de Jonathan Dayton e Valerie Faris, os realizadores do muito bem sucedido Little Miss Sunshine. A surpresa é Zoe Kazan, que não só dá corpo a Ruby como é a sua criadora. Zoe vem, aliás, de uma família de guionistas: o avô escreveu o argumento de On the Waterfront, o seu pai o de Reversal of Fortune e a sua mãe o de Curious Case of Benjamin Button. Com Ruby Sparks, Zoe conseguiu não só escapar aos clichés dos grandes blockbusters dos últimos anos como puxar por um lado mais introspectivo do espectador, que o convida à reflexão.
Desde o início que o filme brinca com a nossa percepção do real e testa-nos para ver até onde vamos. Se, a princípio, achamos que Calvin está a ter alucinações quando vê Ruby, produto da sua criação literária, na sua cozinha, já no momento em que ela é vista na rua por outras pessoas, na altura em que o irmão a conhece ou até quando é apresentada aos pais de Calvin, começamos a entrar na “brincadeira” e a pensar “Bolas, mas ela afinal existe mesmo!”. Mais do que isso, à medida que nos envolvemos com ela, começamos a desafiar o senso comum e a desejar que ela exista com todas as nossas forças. Não nos importa realmente de onde é que ela veio, como é que tal fenómeno foi possível… só sabemos que ela lá está, e queremos certificar-nos de que lá continua.
Contudo, à medida que o filme avança, o primeiro sentimento de euforia é substituído por uma profunda angústia, provocada pela instabilidade da situação de Zoe. Se a princípio somos capazes e até nos voluntariamos a ignorar o facto de que ela é uma criação de Calvin, quando ele começa a usar esse controlo para tentar moldá-la e mantê-la feliz, ou por perto, ou demasiado dependente dele, o filme ganha um tom mais negro e nós começamos a levantar questões que antes não nos tinham passado pela cabeça: mas, afinal, quem é Ruby? Na sua essência, quero dizer… quem é ela? Será que ela sabe quem é? Será que Calvin sabe? Será que nós sabemos? Será que algum dia sabemos quem somos na totalidade, ou quem é a pessoa que está do nosso lado? O que faríamos se a pudéssemos controlar? O que faria ela se nos pudesse moldar a nós? Há algum tipo de amor que reste neste relacionamento? Ou estamos sempre à procura de nos amarmos a nós próprios?
O ponto alto destas questões, que é também quando o filme atinge o seu auge, dá-se quando Calvin mostra a Ruby, numa perturbadora cena, que é o seu criador e que a tem nas suas mãos. A ilusão é desfeita, partida em pedaços, e percebemos que Ruby não voltará… não da mesma maneira. Aquilo que a princípio parece inocente, encantador, um conto de fadas em que estamos dispostos a acreditar, torna-se em algo pesado, doentio. E as perguntas viram-se novamente para nós: quando imagino esses ideais, estou a violentar assim tanto a realidade? Estou a violentar-me assim tanto?
Sejam quais forem as respostas a estas perguntas, ou a outras que podem ser levantadas, é sem qualquer sombra de dúvida que descrevo Ruby Sparks como uma das maneiras mais bonitas, ternurentas, cruas e tocantes de explicar não só o processo criativo, a entrega total a um universo e a uma história, como o poder da nossa imaginação, da projecção de ideais e do pensamento.
Sem ser pretensioso ou demasiado intelectualizado, Ruby Sparks levanta uma série de questões acerca do modo como gerimos as nossas relações, de como equilibramos o nosso lado idealista e sonhador com o que lida com a realidade e de como nos definimos a nós próprios e aos outros. Lida com um território extremamente perigoso, não só por aflorar assuntos como o abuso de controlo nas relações ou a dependência exagerada do outro, a título de exemplo, mas também por nos estender a mão a uma história que, ao mínimo deslize, deixaria de ser credível, envolvente e comovente.
No final de contas, acho que a proposta mais arrojada de Ruby Sparks é a de acreditarmos. Não só na fantasia, não só no reconhecimento de que não existem relações perfeitas, ou a pessoa perfeita, mas naquele momento em que uma Ruby, de facto, aparece sem que seja fruto da nossa imaginação, sem que a consigamos controlar e sem deixar de ser um constante mistério.
*recomendo a leitura do artigo de Isabel Chalupa, acerca das comédias românticas e de quantas seguem a fórmula que referi
Vi ontem e gostei bastante também.
ResponderEliminarDe referir em especial as partes em que ele acha que se lhe der uns tweaks que ela fica "melhor", mas a cada mudança, percebe que na verdade ele não a quer assim, mas apenas que ela volte a ser ela mesma. E isso é que é amor. 8/10
Ainda bem que gostaste, é um filme que vou passar a recomendar, sem sombra de dúvida. =)
EliminarDe facto, a libertação final da personagem, por mais que ele precisasse dela, é a derradeira prova de amor.